Crónica de Sangue

Palavras de outrem...

De acordo com o Jornal de Notícias de hoje o Ministério da Saúde (MS) assume (finalmente) a exclusão dos homossexuais masculinos da dádiva de sangue, “não por causa da sua orientação sexual (?) mas sim pelos seus comportamentos de risco”! E para dar peso a este argumento, as mulheres homossexuais estão autorizadas a dar sangue…
De acordo com o gabinete da Ministra, e citando a notícia hoje veiculada, o que está em causa é “um controlo sobre os comportamentos de risco dos dadores”.
Finalmente, e para dar uma ar sério à declaração, são utilizados “argumentos científicos das elevadas taxas de prevalência nos homossexuais do sexo masculino de doenças graves transmissíveis pela transfusão de sangue”, mas certamente por “esquecimento”, não é mencionada uma única fonte de tão importante e reveladora informação científica!

Esta notícia, em minha opinião, espelha uma tripla descriminação socialmente perigosa:
1. Faz crer à opinião pública que os homossexuais masculinos, além de promíscuos, são perversos ao desejarem transmitir as suas doenças aos receptores do seu sangue.
2. O MS afirma perante a opinião pública que os homossexuais masculinos além de promíscuos são portadores de doenças graves transmissíveis, escudando-se em argumentos científicos que não menciona.
3. Propaga uma inverdade grave: que os homossexuais masculinos são o grupo de maior risco de transmissão de doenças sexualmente transmissíveis, nomeadamente HIV, o que, como bem se sabe, é falso. O grupo de maior risco, de há uns bons anos a esta parte, são os (auto-proclamados) heterossexuais!

Estou 100% de acordo que se defendam os interesses dos receptores de sangue, mas será este o caminho?

Pergunto-me: qual o objectivo desta tomada de posição do MS? Especulemos um pouco deixando perguntas em aberto:

- Será que todos os homossexuais masculinos são promíscuos e praticam sexo sem protecção? Quais os dados epidemiológicos que o confirmam? Se assim é porque é que constituem um dos grupos de menor risco de transmissão de HIV hoje em dia?
- Deveremos concluir deste comunicado do MS que existe a crença de que todos os homens heterossexuais são fiéis, praticam sexo apenas e só com a sua mulher, a qual conheceram sendo ambos virgens, tornando assim impossível contrair qualquer tipo de doença?
- Como afere o MS a orientação sexual indiciadora de comportamentos sexuais de risco? Quantos homens portugueses afirmam ser homossexuais ou ter tido sexo com outros homens?
- Como responde o MS face a um homem homossexual masculino monogâmico ou cujas actividades sexuais são sempre com protecção em comparação com um homem heterossexual, frequentador da prostituição e que habitualmente não usa preservativo?
- E os toxicodependentes que partilham seringas, podem dar sangue?
- E os (muitos) homens ditos heterossexuais que têm sexo ocasional (ou frequente) com outros homens? O MS acha que o vão declarar no acto da dádiva?
- E os bissexuais, onde se encaixam? Por um lado, na óptica pública são fiéis maridos, namorados ou companheiros da sua mulher, mas por outro e simultaneamente são perigosos contaminadores graças aos seus apregoados comportamentos promíscuos. Em que ficamos?
- E por fim, mas muito grave, é a omissão de que todo o sangue é testado para várias doenças, entre as quais o HIV e a Hepatite, pelo que o risco de sangue contaminado ser administrado aos doentes é nulo. Porque é que este ponto não foi incluído na notícia? Não seria melhor dar confiança à população em vez de deliberadamente aquecer a fogueira da homofobia e da descriminação? Se eu fosse homem de acreditar nas teorias de conspiração ainda dava por mim a imaginar que existe algum lobby das Testemunhas de Jeová por trás disto...

Pedro de Freitas, MD, PhD
Médico
Sexologista Clínico (ABS)
Doutorado em Sexologia Clínica (AACS)
Professor Associado da AACS
Presidente do ILAS (Instituto Luso-Americano de Sexologia)

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Publicada porAnónimo  

3 comentários:

Luy disse... 22/07/09, 11:12  

O texto está muito bom.
Contundo, muito sinceramente, eu já nem sei se vale a pena, sequer, perder tempo a pensar sobre estas matérias.
Mas só espero um dia destes não comecem a negar a transfusão de sangue a homens homossexuais porque não contribuem para o banco de sangue.
De qualquer forma, há muitos homossexuais que dão sangue. Simplesmente dizem que são hetero e está o assunto resolvido. É a hipócrisia a ser combatida pela hipócrisia. Por isso é que o país não evolui. Há muita flat de "tomates" para fazer as coisas como deve ser.

zehtoh disse... 22/07/09, 11:37  

Toda a posição assumida pelo MS me parece estúpida e mais baseada em preconceitos do que em factos. E o que aborrece mais é que de facto nada vai acontecer e esta regra absurda vai continuar a ser aplicada. Vou publicar este texto tb no meu blog.

Anónimo disse... 22/07/09, 12:32  

Exacto, eu julgava que o termo "grupo de risco" (vindo da década de 1980) tinha sido substituído pela expressão "comportamento de risco" que é claramente mais acertada e abrangente, sem dar uso a qualquer sentimento semi-escondido de homofobia ou de preconceito.

Ver o Ministério da Saúde de um país ocidental em pleno século XXI assumir tais palavras repudia-me.

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